02.10.24
Porque nem só de séries se fazia o quotidiano televisivo das crianças portuguesas nos anos 90, em terças alternadas, este blog dá destaque a alguns dos outros programas que fizeram história durante aquela década.
Em quartas-feiras alternadas, falamos sobre tudo aquilo que não cabe em nenhum outro dia ou categoria do blog.
O livro do programa, única prova visual da existência do mesmo presente na Internet.
O advento da televisão por cabo – com a sua miríade de novos canais, a grande maioria especializados – abriu aos criadores de conteúdos oportunidades que nem mesmo o surgimento dos canais privados, alguns anos antes, havia permitido. Onde, anteriormente, os programas 'de autor' se encontravam confinados a parâmetros culturais ou de 'talk-show' (e sempre dentro de formatos padronizados, que garantissem os mínimos desejáveis em termos de audiências) era, agora, possível 'arriscar' em conceitos mais experimentais, cujo potencial 'falhanço' não resultasse em calamidade. Não é, pois, de admirar que os últimos anos do século XX e primeiros do seguinte tenham visto surgir programas difíceis de imaginar como parte da grelha da RTP, ou mesmo da SIC ou TVI, a não ser em contextos muito particulares. Um destes surgia mesmo nos últimos meses do Segundo Milénio (celebra este mês o vigésimo-quinto aniversário da sua estreia), no extinto CNL, e talvez mereça a distinção de mais bizarro da grelha da época, pelo menos até a SIC Radical decidir dar Nu-Tícias, alguns anos depois.
Isto porque 'Morfina' – cujo nome não é inspirado na substância narcótica, mas antes no deus grego do sono, Morfeu – era um programa de dez minutos cujo objectivo era, tão simplesmente, contar uma história para adormecer. Não um conto de fadas ou aventura medieval para crianças, mas uma história (ou apenas um texto) que ajudasse os espectadores a adormecer, independentemente da idade; no fundo, uma versão adulta das músicas do Vitinho e dos Patinhos ou, se preferirmos, um precursor televisionado do estilo de vídeo hoje conhecido como ASMR, embora sem as conotações semi-sexuais do mesmo. A dar voz (e autoria) a estes textos estava a jornalista Clara Pinto Correia, que as relatava a um sempre atento Quim Leitão, sendo os dois as únicas figuras presentes no cenário, cuja meia-luz e adereços remetiam a um quarto de cama. Quando a história acabava, o mesmo sucedia com a própria emissão do CNL, que se 'despedia' diariamente ao som da canção titular do programa, como que a 'mandar' os espectadores para a cama, ao melhor estilo Vitinho.
Embora possa parecer que um programa deste tipo nunca conseguiria audiência, e rapidamente desapareceria da grelha televisiva, a verdade é que foram praticamente quatro dezenas os episódios emitidos pelo CNL nos oito meses que o programa se manteve no ar, cada um com uma história diferente, tendo as mesmas sido, mais tarde, reunidas num livro que levava o mesmo nome do programa, lançado pouco depois do fim do mesmo, no Verão de 2000; ainda um pouco mais tarde, 'Morfina' chegava também ao formato VHS, naquela que será uma das mais bizarras edições do mercado do vídeo e DVD em Portugal. Ainda assim, enquanto experiência declarada por parte de um canal 'recém-nascido' e ainda à procura da identidade, 'Morfina' foi uma ideia perfeitamente válida, ainda que talvez demasiado rebuscada para garantir audiência num Portugal ainda muito 'formatado' para programas de consumo fácil, que merece bem ser lembrada no mês em que se celebra um exacto quarto de século desde a sua estreia.