13.03.22
Aos Domingos, o Portugal Anos 90 recorda alguns dos principais acontecimentos desportivos da década.
Embora Portugal tenha um longo e ilustre historial em certas modalidades desportivas (com destaque para o futebol e o atletismo), outras há em que o país pouco ou nada se destaca. Talvez por isso seja tão moralizante ver aparecer atletas lusos em desportos com pouco historial em solo nacional, como a Fórmula 1 (por muito azarada que a carreira do representante nacional, Pedro Lamy, tenha sido) ou o basquetebol, que ainda recentemente viu um jovem luso atingir o patamar máximo do desporto, ao ser recrutado para alinhar nos Sacramento Kings, da toda-poderosa NBA.
No entanto, apesar de pertencer a Neemias Queta o maior feito da história da modalidade em Portugal, o mesmo não foi o primeiro nome de destaque mundial a emergir do basquetebol lusitano; pelo contrário, quase um quarto de século antes do nascimento do jovem, despontava na sua Lisboa natal um outro nome, que se tornaria o mais reconhecível do basket português durante os mais de 45 anos seguintes.
Falamos de Carlos Humberto Lehmann de Almeida Benholiel Lisboa Santos – mais comummente conhecido apenas como Carlos Lisboa – um natural da Cidade da Praia, Cabo Verde, criado em Lourenço Marques (hoje Maputo), mas que viria a fazer nome e carreira em outra capital, com a qual partilhava o apelido e à qual chegaria em 1974, com apenas 16 anos, para representar os juniores do Benfica.
Apesar de não ter sido particularmente auspiciosa – Lisboa foi pouco utilizado, e ponderou mesmo abandonar o basquetebol - essa primeira experiência no clube da Luz permitiu, ainda assim, a Lisboa demonstrar qualidade suficiente para atrair a atenção do rival do outro lado da Segunda Circular, que não tardou em abordar o atleta, por intermédio do seu ídolo Mário Albuquerque. Lisboa não hesitaria em aceitar a proposta, e, na época seguinte (ainda com idade de júnior) surgiria na equipa principal do clube listrado de verde e branco, cores que defenderia durante os sete anos seguintes, ajudando a agremiação de Alvalade a conquistar, durante esse período, três campeonatos nacionais e duas Taças de Portugal da modalidade, além de ter sido homenageado com o Prémio Stromp (atribuído aos atletas do clube que mais se destacam em cada ano) em 1981.
Lisboa ao serviço do Sporting
Tudo parecia correr bem para Lisboa quando, no final dessa mesma época de 1981/82, o Sporting decide extinguir a secção de basquetebol, uma decisão que vigoraria por quase quarenta anos; o base via-se assim, de rompante, 'desalojado' no auge da sua carreira, e obrigado a procurar nova 'casa'. Propostas não faltaram, entre elas uma do FC Porto, mas Lisboa optaria mesmo por se manter na zona de Lisboa, assinando pelo Clube Atlético de Queluz; e o mínimo que se pode dizer é que a decisão do atleta foi extremamente benéfica para o até então modesto clube dos arredores de Lisboa, que, em duas épocas de Lisboa, ganharia a primeira Taça de Portugal (contra o primeiro clube do basquetebolista, o Benfica) e o primeiro campeonato nacional da sua história, elevando consideravelmente o seu estatuto no panorama basquetebolístico nacional.
Não foi apenas o estatuto do clube que se elevou durante este período, no entanto – antes pelo contrário. Com fama de 'decisor' e vencedor de títulos, e presença cativa na Selecção Nacional da modalidade, o basquetebolista não podia deixar de despertar o interesse e a cobiça de vários emblemas, e foi sem surpresas que o Queluz viu o base abandonar os seus quadros em favor do clube que o dispensara quase exactamente dez anos antes (sim, este fenómeno não é, de todo, do domínio exclusivo do futebol...)
Seria aí – no Benfica – que Lisboa viria a passar os restantes doze anos da sua carreira, sempre num registo diferenciado; e apesar de um início, novamente, pouco auspicioso (o Benfica perdeu tudo na primeira época de regresso do atleta, uma situação anómala na carreira de Lisboa) a resposta do base e do respectivo emblema seria retumbante, vindo o Benfica a estabelecer uma hegemonia que duraria quase uma década, e resultaria em sete campeonatos nacionais consecutivos, ainda que apenas em uma Taça de Portugal (em 1991-92.) E apesar de os anos 90 terem representado o ocaso da carreira de um Lisboa já envelhecido, o mesmo ainda iria a tempo de fazer muitos estragos ao serviço dos encarnados – inclusivamente na Euroliga, a principal competição europeia em basquetebol, em que o Benfica teria prestação honrosa na época de 1995-96, e onde, no feriado do 5 de Outubro, Lisboa (na sua última época enquanto profissional da modalidade) estabeleceria um novo recorde de pontos num só jogo, ao conseguir 45 contra o Partizan de Belgrado.
O mais histórico jogo da carreira de Carlos Lisboa, disputado mesmo ao 'cair do pano' da mesma
Uma carreira de mais de duas décadas, e repleta de títulos nacionais (só pelo Benfica, foram dez campeonatos em doze possíveis), via-se, assim, coroada com um feito histórico, bem merecido pela então figura maior do basquetebol nacional, mas também com uma desilusão, já que o último jogo de sempre de Carlos Lisboa seria uma derrota na final do campeonato nacional desse ano, frente ao FC Porto, e já depois de o Benfica ter arrebanhado todos os restantes títulos nacionais da modalidade.
Não terminaria aí, no entanto, a ligação de Lisboa ao desporto que o cativara aos nove anos de idade, ainda em Moçambique; pelo contrário, após a despedida dos 'courts' na qualidade de jogador, o ex-base transpôs toda a sua experiência para o outro lado das linhas, assumindo o posto de técnico em emblemas como o Estoril, o Aveiro Basket e, por duas vezes, o seu clube do coração, o qual levou a mais uma 'enxurrada' de títulos, renovando o seu estatuto como lenda viva do clube da Luz, não só dentro, como também fora dos 'courts'.
Lisboa ao comando do seu clube do coração
Hoje com 63 anos, o 'Eusébio do basket' – cuja camisola com o número 7 'mora' ainda sobre o Pavilhão da Luz – pode ter sido destronado como detentor do maior feito de sempre da História do basket nacional, mas a verdade é que aquele que parece ser o seu sucessor natural, Neemias Queta, terá de ter uma carreira extraordinária para conseguir igualar o notável percurso de Lisboa, ainda hoje o mais condecorado e consagrado atleta português da modalidade.