09.03.22
Em quartas-feiras alternadas, falamos sobre tudo aquilo que não cabe em nenhum outro dia ou categoria do blog...
...como é o caso da linguagem oral.
Um dos mais importantes marcadores e identificadores culturais de qualquer época da História, a linguagem coloquial e oral é, também, um dos elementos mais voláteis e rapidamente mutáveis da sociedade ocidental – o que acaba, precisamente, por contribuir para a tornar tão importante no que toca a datar ou representar uma determinada época. A linguagem é um dos principais meios usados pelo cinema, a televisão ou a literatura para estabelecer em que período tem lugar uma história ou enredo, e mesmo na 'vida real', é relativamente fácil saber em que era alguém cresceu apenas pelas expressões de 'calão' que usa.
Os anos 90 não foram, neste respeito, diferentes de qualquer outra época da História, antes pelo contrário; a 'nossa' década marcou, precisamente, um ponto de viragem, em que o calão deixou de se renovar aproximadamente uma vez em cada década para o passar a fazer em períodos mais próximos dos cinco anos. Assim (e apesar da existência de várias expressões que se tornaram perenes, servindo como ponto de união entre os adolescentes das últimas três a quatro décadas) um adolescente de 1990 teria, provavelmente, dificuldade em entender um seu equivalente de finais da década, e vice-versa, pura e simplesmente porque ambos falavam linguagens significativamente diferentes, cheias de expressões específicas usadas pelos seus pares como factor de identificação sócio-cultural, e tornadas obsoletas assim que o grupo em causa atingia a idade adulta. Assim, expressões como 'radical', 'baril' e 'muita louco' (que chegou a servir como título de discos e programas, tal era a sua popularidade!) davam, já no final da década, lugar a expressões como 'fixe' e 'bacano', que seriam, ainda mais tarde, substituídas por outras, usadas pela geração que cresceu já depois dos anos 2000. Mais - nem todos os calões portugueses de uma determinada época eram iguais, havendo expressões específicas de certas áreas geográficas, sobretudo o Norte (o 'fino' como nome alternativo para a imperial, e mais tarde o 'totil' para designar 'muito') ou o Algarve.
No entanto, apesar de ser, em certos aspectos, tão efémero como os seus antecessores, o calão de finais do século XX e inícios do século XXI conseguiu ter uma influência sobre a cultura vindoura que esses não tiveram; prova disso mesmo é a adição do eterno 'bué' (talvez o termo de calão mais perene e imortal de sempre) aos dicionários oficiais de língua portuguesa. Para além desse 'gigante' do calão português, no entanto, a gíria de finais dos 90 deu à língua-pátria expressões ainda hoje tão reconhecíveis como 'bora lá' (ou a alternativa 'baza lá'), 'chavalo' (cujo plural foi, a dada altura, 'chavais') 'uma beca' (ou 'um coche', ou 'um coto') 'apanhar uma beza[na]', 'ficar todo mamado', 'bater couro', 'curtir', 'dar cana', 'betinho' (ou só 'beto'), 'nina/nino, 'mor' (ou 'babe'), 'stôr(a)', 'tásse' (ou 'tá tudo', ou 'mékie?') 'ser cortes', 'cenas', e, claro, o 'LOL', a primeira de várias siglas internáuticas entretanto transformadas em interjeições da oralidade.
Outros termos mais estranhos ou menos óbvios, como o uso de 'nite' para cigarro ou 'puto marafado' para designar alguém com propensão para vícios, sobretudo para drogas leves, ficaram perdidas no tempo, dificilmente sendo reconhecíveis a alguém que não tenha sido adolescente até, no máximo, à primeira metade dos anos 2000; para quem viveu essa época na 'linha da frente', no entanto, frases como 'mékié, puto marafado? Conta cenas. Vou-te cravar um nite, é na boa?' têm, ainda hoje, um sentido perfeitamente claro, ainda que – como é apanágio do calão – apenas e só para uma geração de ex-crianças e jovens. E apesar de a sociedade ter, entretanto, evoluído (para melhor) não serão poucos os ex-'putos' dos 90s e 2000s que, ainda hoje, se apanhem a utilizar calão e abreviaturas ao falar com os amigos ou escrever uma mensagem de texto no WhatsApp ou Facebook – prova cabal, se tal fosse necessário, do poder que a linguagem coloquial falada e escrita de uma certa época tem sobre a juventude que lhe é contemporânea...